Desde os primeiros escritos que Agustina Bessa-Luís escolhe um lugar, uma casa, uma paisagem, para aí fazer circular os seus personagens. Não quer dizer que pertençam exclusivamente ali, poderiam existir noutros lugares, climas e sociedades, mantendo o comportamento e o destino. Porque o que se move é a alma, e essa habita todos os lugares e todos os tempos, ao mesmo tempo, sem neles se fixar para sempre. É isso que torna a sua obra intemporal, e não o local.
No entanto, e porque Agustina em nenhuma das suas obras se desprende de si própria, pareceu-nos que este exercício de seguir os rastos das suas paragens inspiradoras podia ser também um contributo memorialista da própria Agustina.
Assim, escolhemos para apontamentos da nossa viagem a cidade do Porto, o Douro e o Minho, deixando para outros roteiros outros caminhos percorridos na vasta obra de Agustina.
Imaginemos um passeio pelo mapa caminhando por aqui e ali, na companhia de uns e de outros, e nas suas falas; parando, para olhar uma rua, uma casa, um vale, uma ruína; ou para sentir um silêncio que nunca foi interrompido. É possível ainda localizar, lembrar, imaginar, e isso transporta-nos para dentro dos cenários, num convívio próximo e privilegiado.
Resta-nos agradecer à Fundação Millennium bcp, na pessoa do Dr. Fernando Nogueira, com quem foi assinado o protocolo de apoio mecenático a esta iniciativa que agora se concluiu e se apresenta ao público, com o desejo de que constitua mais uma nota que estimule a um novo convívio com Agustina.
Mónica Baldaque
Presidente da Direcção
PORTO
DOURO E MINHO
As Fúrias é o terceiro romance que a autora publicou nos anos seguintes à revolução de 25 de Abril de 1974, precedido por As Pessoas Felizes, de 1975, e Crónica do Cruzado Osb., de 1976, tendo assim concluído uma trilogia que se ocupa da temática das transformações sociais, num país em ruptura com o seu passado político. O romance As Fúrias conta a história da ocupação de um palacete na cidade do Porto «por uma pequena multidão ruidosa». As Fúrias são aquelas que acordam «de tanto que gritam os povos “justiça!”» e «sacodem os seus membros gelados e dão caça aos assassinos, procurando o erro no coração mais dissimulado». Esta casa, situada na Foz, pertencia à família Rodom, e era agora habitada por duas senhoras de idade avançada: Olga Rodom e a sua criada Arminda. A casa está descrita logo no início do romance como um «grande palacete arruinado situado numa clareira onde crescia a erva, com raros brotos de gramínea», uma «casa de trinta quartos e dois salões de festas». Olga optou por se manter na casa partilhando o espaço com os ocupantes, apesar do incentivo das filhas para abandonar a casa onde enfrentava agora «toda a espécie de perturbações, gritos e olhares e até ligeiras alusões à sua qualidade burguesa». Ao longo do romance surge a presença e a crónica dos familiares de Olga, como o irmão Pedro, as duas filhas Ofélia e Mimosa, ou os netos de Olga, assim como os novos moradores.
O romance As Fúrias foi adaptado ao teatro com texto de Agustina Bessa-Luís e encenação de Filipe La Féria, e representado na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II entre 13 e 31 de Julho de 1994. Reuniu nos principais papéis Eunice Muñoz, Raul Solnado, São José Lapa e Diogo Dória, entre muitos outros actores.
A partir das descrições que se seguem, situamos a casa dos Rodom na Foz Velha, no Porto. Neste contexto, sugerimos descer a Rua da Cerca, e caminhar por algumas das ruas estreitas da Foz Velha onde ainda são visíveis os sinais de antigos palacetes, até à Esplanada do Castelo.
Nesta passagem do livro, localizamos a estreita Rua da Fonte da Luz, onde Agustina recorda os eléctricos que por ela passavam, procedentes do Passeio Alegre: «Situada numa das veredas da Foz Velha onde os trens passavam outrora com uma habilidade semelhante a uma pontaria, a casa, sobre os telhados baixos da vizinhança, tinha a vista da faixa do rio já crispada pelo mar aberto. Naqueles lugares, salvo algum movimento de grupos que se manifestavam sob a pulsação dos partidos, raramente havia trânsito. Certos arvoredos davam a impressão de cercas claustrais cujos muros tivessem sido derrubados. As paredes de reboco eram atingidas duma hidropisia que inchava nelas uns ventres húmidos, com musgos a desenhar-lhes a ossada. E sobre eles floria a japoneira quase em estado selvagem, com uns rebentos de fome nos braços descarnados, lisos como a pele do congro.»
[…]
«A casa de Olga, de pálidos azulejos azuis, tinha também estátuas no jardim; algumas ninfas que pareciam mais acolchoadas do que nuas e cuja licenciosa presença era completamente apagada por aquele aspecto de criadinhas de província. Era um jardim quase grandioso, com grande soma de árvores mais próprias para um parque inglês, do que para ensombrar dois quarteirões daquele burgo onde se implantavam os corredores das ilhas. No Porto há essa paisagem de Constable metida dentro de muros coroados de fundos de garrafas partidas.»
[…]
«A casa da Foz, que durante muitos anos ninguém considerava senão um património congelado, estava muito mal conservada. Porém, com os caixilhos descascados e as canalizações rotas, ainda causava boa impressão. Era o tipo do palácio de brasileiro democrata, que chega do Rio e contrata um professor das Belas-Artes para pintar alegorias nas paredes.»