Desde os primeiros escritos que Agustina Bessa-Luís escolhe um lugar, uma casa, uma paisagem, para aí fazer circular os seus personagens. Não quer dizer que pertençam exclusivamente ali, poderiam existir noutros lugares, climas e sociedades, mantendo o comportamento e o destino. Porque o que se move é a alma, e essa habita todos os lugares e todos os tempos, ao mesmo tempo, sem neles se fixar para sempre. É isso que torna a sua obra intemporal, e não o local.
No entanto, e porque Agustina em nenhuma das suas obras se desprende de si própria, pareceu-nos que este exercício de seguir os rastos das suas paragens inspiradoras podia ser também um contributo memorialista da própria Agustina.
Assim, escolhemos para apontamentos da nossa viagem a cidade do Porto, o Douro e o Minho, deixando para outros roteiros outros caminhos percorridos na vasta obra de Agustina.
Imaginemos um passeio pelo mapa caminhando por aqui e ali, na companhia de uns e de outros, e nas suas falas; parando, para olhar uma rua, uma casa, um vale, uma ruína; ou para sentir um silêncio que nunca foi interrompido. É possível ainda localizar, lembrar, imaginar, e isso transporta-nos para dentro dos cenários, num convívio próximo e privilegiado.
Resta-nos agradecer à Fundação Millennium bcp, na pessoa do Dr. Fernando Nogueira, com quem foi assinado o protocolo de apoio mecenático a esta iniciativa que agora se concluiu e se apresenta ao público, com o desejo de que constitua mais uma nota que estimule a um novo convívio com Agustina.
Mónica Baldaque
Presidente da Direcção do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís
PORTO
DOURO E MINHO
No ano de 1967, Agustina Bessa-Luís foi premiada com o Prémio Nacional de Novelística atribuído pelo Secretariado Nacional de Informação, com o romance Homens e Mulheres. Este volume dá início ao ciclo A Bíblia dos Pobres, que reúne os romances Homens e Mulheres e As Categorias, este último concluído em Agosto de 1969 e que a autora dedicou ao casal Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes.
Em 1967, Agustina já nos dava conta desta sua obra num depoimento para o Diário de Notícias, «Os escritores falam do que escrevem»: «Actualmente trabalho em revisão de provas, o mais duro e extenuante trabalho intelectual […] Mas respondo mais exactamente se disser que redijo e medito uma obra de vários volumes, a que chamei A Bíblia dos Pobres. O primeiro, Homens e Mulheres, deve aparecer no princípio do Outono. O segundo, As Grandes Mudanças, está também em conclusão. Tenho aqui ao lado esse manuscrito de letra negra e miúda.» (Diário de Notícias, 21 de Setembro de 1967. Ensaios e Artigos, vol. I) Com efeito, para integrar o ciclo A Bíblia dos Pobres, a autora escreveu ainda uma série de outros textos, datados da década de 60, mas que viria a abandonar. Estes textos foram reunidos em 2014 no volume Elogio do Inacabado, com prefácio de Silvina Rodrigues Lopes, que deu início à Série de Cultura Portuguesa da Fundação Calouste Gulbenkian. Este volume reúne os títulos: «Homens e Mulheres»; «As Grandes Mudanças»; «Coração-de-Água»; «O Caçador Nemrod» e «Os Meninos Flutuantes».
O romance As Categorias tem início no período revolucionário que sucedeu ao golpe de 28 de Maio de 1926, e que deu origem a uma ditadura militar. Na sequência dos eventos, o presidente da República Bernardino Machado resignou ao cargo, dando lugar à Presidência, de alguns dias apenas, do oficial da armada José Mendes Cabeçadas. Agustina enquadra as personagens neste contexto social, e no ambiente vivido nas ruas onde «as balas sibilavam» e «havia trincheiras ocupadas por civis». Refere-se à revolta reviralhista de Fevereiro de 1927, no Porto, organizada pelos republicanos contra a Ditadura Militar. Assim, situa uma grande parte do romance As Categorias em vários lugares, e com diversos percursos, na cidade do Porto.
É essencialmente em torno da família Claver que o romance se desenrola — Amadeu Claver, sua mulher e filhos, Samuel, Fabelina, Mimosa e ainda Quintino Claver, ou Octávia, irmã de Amadeu — entre outras personagens com quem se cruzam e se relacionam. E é na Rua do Bonjardim que começamos por enquadrar «O clã antigo [os Claver]», «nalgum casarão da Rua do Bonjardim, com quintais que produziam vinte pipas e se prolongavam até às pedreiras da Trindade». No lugar das pedreiras encontram-se, na actualidade, galerias comerciais, inauguradas em 2008.
A casa dos Claver na Rua do Triunfo é um pólo de memórias familiares e afectivas. E note-se que esta rua corresponde, desde o ano de 1940, à actual Rua D. Manuel II. A autora, porém, situou a história num ano anterior a esta mudança de toponímia: «Era em 1927.»
E são vários os momentos passados na casa da Rua do Triunfo, dos quais transcrevemos dois: «A filha que [Mimosa] deixou foi Teresa Claver, Tere; a avó criou-a na sua casa da Rua do Triunfo, no Porto. Para não apoquentar os leitores com uma genealogia que só tem como desculpa o não lhes dizer respeito, vou resumir os meus personagens a ponto de os tornar indispensáveis. Aos cinco anos Tere ficou órfã e o pai trouxe-a de Lisboa para ser entregue a Marita. Era em 1927. Leopoldo viu-a nesse ano, pelo Carnaval, vestida de pierrot, com um sinal de tafetá na cara, e lançando serpentinas douradas da varanda da Rua do Triunfo. Serpentinas douradas, só por si, era uma coisa fabulosa. Mas a pequena Tere, na sacada, com os pompons brancos da blusa, de um ridículo quase mítico, de pantomina triste, comoveu-o.
Quando da intentona de Fevereiro, a casa da Rua do Triunfo foi abandonada por algum tempo. As balas sibilavam nas ruas e havia trincheiras ocupadas por civis. Tere ouvia as criadas chorar no quarto do ferro; de noite deitavam-se no corredor, gemendo histericamente. Não pareciam realmente assustadas, mas sim tomadas de uma excitação de tipo erótico. Marita acabou por mandá-las embora ou distribuiu-as pelas propriedades, onde se fartaram de mandriar e namorar os caseiros. Na casa ficou só Nani, a ama, e Bastião, o criado de Samuel. Fez-se um silêncio encantado e sussurrante. As portas cantaram a sua canção florestal, as goteiras puseram-se a delirar com o peso da chuva; os vidrilhos dos lustres cumprimentavam-se com pequenos toques e vénias.»
[…]
«Quando Quintino Claver vinha ao Porto e percorria, nos seus passos largos, habituados ao ar livre, as salas da Rua do Triunfo, um certo alvoroço comunicava-se a toda a gente. As criadas apressavam-se nos seus afazeres, falavam com mais estridência e acabavam às vezes por brigar entre elas. Acidentalmente partiam-se copos, perdiam-se coisas, o dinheiro rolava para debaixo das mesas.»
E saindo da Rua do Triunfo, a autora situa os Claver numa outra zona da baixa da cidade do Porto: «A grande casa dos Claver tinha sofrido modificações. Da antiga moradia da Rua do Triunfo, a família mudou-se para Sá da Bandeira; o general, avô de Marita, tivera ali a sua quinta, com profusão de laranjeiras e onde criara uma porção de meninas, algumas formosas, com botas de botões e cabeleiras como Cristos.»
[…]
«Anunciavam-se com regularidade os leilões de herdeiros. Marita tornara célebre a almoeda da casa da Rua do Triunfo, fazendo para ela convites como se se tratasse de uma festa mundana.»
O senhor de Ratolla, um «revolucionário e muito homem da República», era presença assídua em casa dos Claver. Certo dia, «deparou, ao cimo de 31 de Janeiro, com uma barreira de sacos de areia. Os homens, com as armas aperradas, olhavam para ele com estupefacção. Deu-lhes cigarros. Desprotegido, de pé no passeio, ligeiramente encostado às persianas de ferro duma ourivesaria, ele fumava também pela comprida boquilha de âmbar. Era um dia húmido e triste; via-se, à distância, a agulha enevoada da Torre dos Clérigos.»
«A palavra pátria pronunciada por ele [senhor de Ratolla] sacudia os homens e arrebatava-os até às lágrimas. Deram-lhe vivas. […] A lembrança de Marita tinha-se apagado nele. Meteu aos Lóios, desceu a Rua das Flores, foi bater a uma portinha no Largo de S. Domingos. Veio abrir uma mulher nova, de chambre folgado, cabelos crespos, olhos rasgados.»
Era também na Rua das Flores que se podiam encontrar «as amigas de Amadeu [Claver], mulheres pequenas, espertas, criadas nos terceiros andares da Rua das Flores, nos cubículos sobre as ourivesarias».
«Enquanto atravessava a Praça da Ribeira, uma granada veio-lhe a cair aos pés. Não explodiu, e o senhor de Ratolla, com o auxílio de populares, retirou-a da cratera que ela fizera na terra e levou-a com ele.»
Bastião, o criado dos Claver por cerca de quarenta anos, fora «nascido e criado em Gondomar, nas terras baixas e vizinhas da cidade, viera para o Porto era órfão da mãe; engraxava calçado num portal, e o senhor de Ratolla deu com ele numa tarde em que se propunha comprar um chapéu novo».
Ratolla pô-lo ao serviço numa casa particular, e depois «entrou ao serviço de Samuel Claver», de quem não mais se separou, chegando a conduzi-lo «às noitadas musicais em casas da Rua do Rosário, onde vivia uma gente sedentária e cismática que ainda formava os filhos na Bélgica em Engenharia Civil».
Era na Rua das Virtudes que ficava a casa da madrasta de Bastião, mulher «com os seios pendentes e o cabelo desgrenhado». Da casa, Bastião tinha esta memória: «A borra de café refervida apagava às vezes a chama; e sobrevinha um silêncio que o feria no coração, como se alguma coisa estivesse iminente, alguém fosse de repente atirar-se à rua ou morrer na sua enxerga de palha, nesse quarto andar da Rua das Virtudes. Havia palácios tornados albergues de muitas almas, as varandas de ferro embandeiradas de farrapos.»