Desde os primeiros escritos que Agustina Bessa-Luís escolhe um lugar, uma casa, uma paisagem, para aí fazer circular os seus personagens. Não quer dizer que pertençam exclusivamente ali, poderiam existir noutros lugares, climas e sociedades, mantendo o comportamento e o destino. Porque o que se move é a alma, e essa habita todos os lugares e todos os tempos, ao mesmo tempo, sem neles se fixar para sempre. É isso que torna a sua obra intemporal, e não o local.
No entanto, e porque Agustina em nenhuma das suas obras se desprende de si própria, pareceu-nos que este exercício de seguir os rastos das suas paragens inspiradoras podia ser também um contributo memorialista da própria Agustina.
Assim, escolhemos para apontamentos da nossa viagem a cidade do Porto, o Douro e o Minho, deixando para outros roteiros outros caminhos percorridos na vasta obra de Agustina.
Imaginemos um passeio pelo mapa caminhando por aqui e ali, na companhia de uns e de outros, e nas suas falas; parando, para olhar uma rua, uma casa, um vale, uma ruína; ou para sentir um silêncio que nunca foi interrompido. É possível ainda localizar, lembrar, imaginar, e isso transporta-nos para dentro dos cenários, num convívio próximo e privilegiado.
Resta-nos agradecer à Fundação Millennium bcp, na pessoa do Dr. Fernando Nogueira, com quem foi assinado o protocolo de apoio mecenático a esta iniciativa que agora se concluiu e se apresenta ao público, com o desejo de que constitua mais uma nota que estimule a um novo convívio com Agustina.
Mónica Baldaque
Presidente da Direcção do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís
PORTO
DOURO E MINHO
Foi na casa que pertencia à sua família, em Ariz, que Agustina Bessa-Luís escreveu, aos dezanove anos, Deuses de Barro.
Se a vista da casa era essencialmente do vale e do rio, hoje emoldura uma região mais urbanizada da cidade da Régua. E a estrada que conduz a Ariz, vinda de Godim, viu ser erigida, nas últimas décadas, uma arquitectura essencialmente residencial.
Também no romance Deuses de Barro já era notório um contraste entre os ambientes rural e urbano. E é em Ana e José Maria, amigos de infância, duas das personagens desta história, que este contraste é mais visível. Ana representa a vida na aldeia onde José Maria, vindo da cidade, passava as suas férias em família.
«‒ A aldeia dos convalescentes, desiludidos, misantropos, doentes‑sãos; dos conformados, dos rebeldes também; marasmo e não olvido. É a aldeia, isto. A aldeia que o espírito aprecia, que o corpo detesta…» ‒ diz José Maria.
Ou no narrador de Deuses de Barro, que vai equiparando o tempo vivido na aldeia com os costumes citadinos: «A cidade, o chá bisbilhoteiro, o cinema “educativo”, as casas de modas, os retalhos em conta… Ah! As mil e uma comodidades!… […] Até ao ano, cadeiras de lona, mesinha de vime sob a trepadeira, as secas glicínias… Até à volta, ribeiro e prado, montado e veredas, toque de Angelus, dobre de finados, mosteiro vetusto e sombrio! Adeus, férias torturantes, benditas férias de longas horas sem rumo, horas deliciosas sem preocupação.»
No mesmo ano em que concluiu o romance, Agustina enviou um dactiloscrito ao escritor Alberto de Sousa Costa pedindo-lhe um prefácio, porém Sousa Costa recusou prefaciar o livro numa longa carta enviada à autora, onde explicava as suas razões. Argumentou que Deuses de Barro «são a nebulosa, melhor, a antemanhã, de que há‑de sair o dia claro e luminoso» e que «representam o absoluto na negação iconoclasta. Eu creio em Deus, eu creio em Cristo ‒ princípios de todos os princípios, e causa de todas as causas». Agustina Bessa-Luís daria assim início à redacção de Mundo Fechado, o prolongamento de um mesmo olhar sobre a aldeia e a cidade, como em Deuses de Barro. Este romance, que veio a ser publicado em 2017, «representa já um grito de liberdade, ousadia, revolta e desafio contra os deuses de barro que nos vigiam, nos tolhem, com quem somos obrigados a conviver e a venerar». (Mónica Baldaque, no prefácio à edição de 2017)