Desde os primeiros escritos que Agustina Bessa-Luís escolhe um lugar, uma casa, uma paisagem, para aí fazer circular os seus personagens. Não quer dizer que pertençam exclusivamente ali, poderiam existir noutros lugares, climas e sociedades, mantendo o comportamento e o destino. Porque o que se move é a alma, e essa habita todos os lugares e todos os tempos, ao mesmo tempo, sem neles se fixar para sempre. É isso que torna a sua obra intemporal, e não o local.
No entanto, e porque Agustina em nenhuma das suas obras se desprende de si própria, pareceu-nos que este exercício de seguir os rastos das suas paragens inspiradoras podia ser também um contributo memorialista da própria Agustina.
Assim, escolhemos para apontamentos da nossa viagem a cidade do Porto, o Douro e o Minho, deixando para outros roteiros outros caminhos percorridos na vasta obra de Agustina.
Imaginemos um passeio pelo mapa caminhando por aqui e ali, na companhia de uns e de outros, e nas suas falas; parando, para olhar uma rua, uma casa, um vale, uma ruína; ou para sentir um silêncio que nunca foi interrompido. É possível ainda localizar, lembrar, imaginar, e isso transporta-nos para dentro dos cenários, num convívio próximo e privilegiado.
Resta-nos agradecer à Fundação Millennium bcp, na pessoa do Dr. Fernando Nogueira, com quem foi assinado o protocolo de apoio mecenático a esta iniciativa que agora se concluiu e se apresenta ao público, com o desejo de que constitua mais uma nota que estimule a um novo convívio com Agustina.
Mónica Baldaque
Presidente da Direcção do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís
PORTO
DOURO E MINHO
O romance Fanny Owen é inspirado num complexo enredo sentimental ocorrido no final do século XIX, tendo como principais intervenientes: José Augusto Pinto de Magalhães, proprietário da Quinta do Lodeiro, o escritor Camilo Castelo Branco e Francisca Owen (Fanny), filha de D. Maria Rita e do coronel inglês, Hugo Owen, um conselheiro do rei D. Pedro aquando do Cerco do Porto. No romance, Agustina Bessa-Luís recupera o tempo de juventude em que José Augusto e Camilo se apaixonam por Fanny, um amor ciumento e obsessivo que acabaria em tragédia. Camilo Castelo Branco foi um autor a quem Agustina Bessa-Luís dedicou diversos estudos, entre conferências, ensaios e textos teatrais, reunidos no livro Camilo: Génio e Figura.
Em 1981 Manoel de Oliveira apresentava o filme Francisca, baseado no romance Fanny Owen, de 1979. Nas palavras da autora, Fanny Owen «é um romance conduzido até mim através duma ideia que não me ocorreu a mim. Foi o caso de me terem pedido os diálogos para um filme cujo assunto seria Fanny Owen. Para escrever os diálogos tive que conhecer as circunstâncias que os inspirassem, e a história que os comporta. Assim nasceu o livro e o escrevi.»
Fanny Owen é um livro envolvido pelo espírito do romantismo oitocentista que se desenrola entre o Porto, Vila Nova de Gaia e a região duriense.
Foi nesta casa, hoje desabitada, em Vilar do Paraíso, no número 20 da rua que actualmente tem o nome de Camilo Castelo Branco, que o coronel Owen viveu com a sua família, ele que conservava «casa posta em Cedofeita e raramente era visto em Vilar do Paraíso». Camilo e José Augusto acabariam por também arranjar casa neste lugar de modo a ficarem perto de Fanny, na tentativa de conquistarem o seu amor. Esta casa, a Vila Alice, tem uma importante e definitiva presença em todo o romance. Podemos ver da rua, atrás dos portões gradeados, o nome da casa nos azulejos sobre a porta principal.
«O rasto do coronel e de D. Rita assinala‑se numa quinta no Douro, depois no Porto, à Torrinha, na Rua da Sovela, e em Vilar do Paraíso, onde Owen escreveu o seu livro sobre o Cerco do Porto. A casa da Rua de Cedofeita corresponde já a um período menos claro da harmonia conjugal. Raul Brandão, que os viu através de testemunhos mais directos, deixa transparecer uma incompatibilidade entre as fantasias mesquinhas duma burguesa rica e a ingénua severidade do fidalgo galês. Ele tinha por timbre um galo de prata e a divisa “Alert and Loyal”. Para cumprir com tal divisa, impõem-se sacrifícios; um deles foi decerto o de separar‑se da mulher e dos filhos.»
«Não se pode dizer que houve um plano no caso de Fanny Owen. No entanto, Camilo comportou‑se como se obedecesse a um traçado minucioso. Quando saiu de Coimbra não voltou para Vilar do Paraíso; voltou para o Porto, e todas as vezes que José Augusto o procurou não pôde encontrá‑lo, nem em casa, nem em nenhum dos lugares habituais, o Café Guichard ou o Águia d’Ouro.»
É em Baião que se situa a quinta do Lodeiro que pertencia a José Augusto. «Estes solares pobres que nasciam como refúgio de fidalgos arruinados e se iam acrescentando de varandas envidraçadas e alcovas em tabique onde luziam os ouropéis dos quadrinhos dos milagres, havia‑os no Douro em profusão. No rechão dum vinhedo, entre velhas figueiras pingo‑de‑mel; encravados nos “povos” de calçadas escorregadias onde corriam crianças com o suspensório de pano atravessado no peito como a bandoleira duma espingarda; ou então em lugares com preocupações aristocráticas, dentro de muros com buganvílias e alguma outra trepadeira mais rara, caneleira chamada, ou flor‑das‑cinco‑chagas.
José Augusto vivia num sítio destes, o Lodeiro. Um tipo de morada que tresanda a dignidade desculpada de ser pobre pelo corpo da capela entre duas abas de habitação.»
É aqui que Camilo vai passar uma temporada com o seu amigo José Augusto, «jovem proprietário da Quinta do Lodeiro» que «tinha uma particularidade mais ruinosa: fazia versos». Nesta casa Camilo encontrou «enciclopédias e romances de cavalaria» nas estantes.
«Chegando ao Lodeiro, Camilo encontrou José Augusto apeado do cavalo e a sacudir o poncho de lã que usava, como uma coisa original naqueles sítios. Trouxera‑o da Argentina um antigo, como ele chamava aos parentes de seu pai; também trouxera uma cabaça para tomar mate, com a cana de prata para beber. Estava no louceiro da sala de jantar entre pratos com frutas, das Caldas, e outros que tinham pintado o Bom Jesus do Monte.
Camilo não pôde furtar‑se a um arrepio diante daquela fachada de escasso pé‑direito e a capela com três degraus musguentos. O pátio lajeado fazia ressoar o casco dos cavalos; era um som vibrante e sobrenatural. “Belo sítio! — pensou Camilo. — Ou se fica santo ou doudo. Ou se comete um crime.”»
Com o estado de saúde de Fanny a debilitar-se de dia para dia, ela própria «teve a ideia de irem para o Bom Jesus do Monte passarem uma temporada. Diferente do que Camilo deixa supor, era ela quem manifestava desejos naquela casa e fazia com que se cumprissem. Ele [José Augusto] apressou-se a fazer-lhe a vontade, e, assim, depois de passados dois meses na Foz, foram em princípios de Abril para Braga e aí se demoraram quinze dias. Camilo foi vê-los ao Bom Jesus. Encontrou Fanny a ler, sentada num degrau da escadaria, e ela apontou para José Augusto, que vinha de cima em passo cadenciado.»