Desde os primeiros escritos que Agustina Bessa-Luís escolhe um lugar, uma casa, uma paisagem, para aí fazer circular os seus personagens. Não quer dizer que pertençam exclusivamente ali, poderiam existir noutros lugares, climas e sociedades, mantendo o comportamento e o destino. Porque o que se move é a alma, e essa habita todos os lugares e todos os tempos, ao mesmo tempo, sem neles se fixar para sempre. É isso que torna a sua obra intemporal, e não o local.
No entanto, e porque Agustina em nenhuma das suas obras se desprende de si própria, pareceu-nos que este exercício de seguir os rastos das suas paragens inspiradoras podia ser também um contributo memorialista da própria Agustina.
Assim, escolhemos para apontamentos da nossa viagem a cidade do Porto, o Douro e o Minho, deixando para outros roteiros outros caminhos percorridos na vasta obra de Agustina.
Imaginemos um passeio pelo mapa caminhando por aqui e ali, na companhia de uns e de outros, e nas suas falas; parando, para olhar uma rua, uma casa, um vale, uma ruína; ou para sentir um silêncio que nunca foi interrompido. É possível ainda localizar, lembrar, imaginar, e isso transporta-nos para dentro dos cenários, num convívio próximo e privilegiado.
Resta-nos agradecer à Fundação Millennium bcp, na pessoa do Dr. Fernando Nogueira, com quem foi assinado o protocolo de apoio mecenático a esta iniciativa que agora se concluiu e se apresenta ao público, com o desejo de que constitua mais uma nota que estimule a um novo convívio com Agustina.
Mónica Baldaque
Presidente da Direcção
PORTO
DOURO E MINHO
No romance A Muralha conta-se a história de três irmãs – Flávia, Noémia e Teresina – filhas de José Salústio, um pastor baptista e dono de uma tipografia na Rua Formosa. Acompanhamos o destino de cada uma delas nos casamentos instáveis e desolados. E as personagens vão-se desdobrando numa teia complexa entre descendentes e passantes. Gerson, filho de uma ligação de Vasco Gonfalim, marido de Flávia, com uma modista de Leça, deambula, um ser indefinido e perturbado, é o elo romanesco, misterioso, neste longo enredo.
Se há um cenário de beira-mar, constante, mas não exactamente localizado, embora com referência às casas dos sargaceiros, o que presume praias do Norte, há das mais belas descrições da cidade do Porto. Nos excertos escolhidos recordamos a personagem de Noémia que vive depois de casada, com Reymão, na zona ribeirinha, junto à Muralha Fernandina. Podemos ver um pano desta muralha no Jardim Arnaldo Gama. Deste jardim, descendo pelas escadas dos Guindais até à Ponte Luís I, por onde atravessamos o rio, avistamos de Vila Nova de Gaia essa encosta ribeirinha, e novamente a muralha e as duas torres que se conservam, ao cimo do Funicular dos Guindais.
«Quem desce de Gaia, com os olhos ainda presos à bonomia sólida e às vezes idílica dos subúrbios, ao seu mau gosto urbano e à sua vida comercial em seu sabor de horta com glicínias e água do poço, quem traz ainda consigo essa indiferença que as coisas felizes nos provocam, suspende-se de repente, ao encontrar a face da cidade. Está ela como que inclinada numa cordilheira, com o ar cativo, as faixas das ruas parecendo pendentes do casario desigual. A luz é doce sobre os telhados dum vermelho estagnado; paredes de folha ferrugenta, cores de cimentos sujos e os verdes húmidos dos socalcos onde outrora se talhavam talvez as vinhas, compõem uma expressão de profunda simpatia moral.»
[…]
«Toda a cidade com as agulhas dos templos, as torres cinzentas, os pátios e os muros em que se cavam escadas, varandas com os seus restos de tapetes de quarto pendurados e o estripado dos seus interiores ao sol fresco, tem toda ela uma forma, uma alma de muralha. Há como que seteiras, fendas, passadiços e bocais de pontes diante dos nossos olhos assestados sobre essa tremenda presença de rocha, caliça e betão armado.»
[…]
«A muralha infunde em nós uma doce tristeza europeia, um orgulho de actividade, um desenho de pompas escravas, um sonho económico e uma impraticável fé de liberdade. A muralha cresce com os seus pequenos palácios de beira-mar, os seus bairros insubstituíveis de lata e de papel, as suas casas bancárias, os crimes de venalidade e de injúria, e os alegres pais de família com uma mulher em cada braço.»
Neste romance, a Muralha Fernandina é um elemento metafórico da «alma» da cidade do Porto, «povoada de funcionários e mestres-de-obras, de colegiais, e artistas, ingleses colonialistas — e pelo capital. A sua alma é funda e profética, os seus costumes rigorosos mas não severos — e há mais espírito na sua gente de ilha, na sua gente crua de sentimentos e afeiçoada à desgraça, que nos altos patíbulos da raça onde se convertem os grandes a um passatempo de serões. Ela é a muralha, com a cintura rodeada de nevoeiros, generosa e tímida, com a sua coroa provinciana e a luva suja na mão descalça.»
Agustina retoma mais tarde esta incursão num artigo intitulado «Portus», considerando que, na origem, «Portus» «[…] pode ter dado o Porto de hoje, possivelmente depois da dominação romana fixou-se em lugar mercantil e ribeiro, independente mais tarde, duma história feudal.» E com «a Muralha Fernandina, ficou provavelmente constituída a praça-forte dos mercadores, que assim se defendia de razias e incursões, tanto de bandidos como de senhores de territórios».
Sobre a presença da colónia britânica na cidade lembra, no mesmo artigo, Júlio Dinis, que «descreve com bastante rigor documental as casas dos cidadãos britânicos no Porto, pintadas de preto e duma arquitectura dessa solidez funcional que é mais oportuna do que interessante. Eles definiam esse colonato comercial que foi também consequência duma vida portuária de transacção constante.» (Diário Popular, 7 de Outubro de 1971. Ensaios e Artigos, vol. I)