Desde os primeiros escritos que Agustina Bessa-Luís escolhe um lugar, uma casa, uma paisagem, para aí fazer circular os seus personagens. Não quer dizer que pertençam exclusivamente ali, poderiam existir noutros lugares, climas e sociedades, mantendo o comportamento e o destino. Porque o que se move é a alma, e essa habita todos os lugares e todos os tempos, ao mesmo tempo, sem neles se fixar para sempre. É isso que torna a sua obra intemporal, e não o local.
No entanto, e porque Agustina em nenhuma das suas obras se desprende de si própria, pareceu-nos que este exercício de seguir os rastos das suas paragens inspiradoras podia ser também um contributo memorialista da própria Agustina.
Assim, escolhemos para apontamentos da nossa viagem a cidade do Porto, o Douro e o Minho, deixando para outros roteiros outros caminhos percorridos na vasta obra de Agustina.
Imaginemos um passeio pelo mapa caminhando por aqui e ali, na companhia de uns e de outros, e nas suas falas; parando, para olhar uma rua, uma casa, um vale, uma ruína; ou para sentir um silêncio que nunca foi interrompido. É possível ainda localizar, lembrar, imaginar, e isso transporta-nos para dentro dos cenários, num convívio próximo e privilegiado.
Resta-nos agradecer à Fundação Millennium bcp, na pessoa do Dr. Fernando Nogueira, com quem foi assinado o protocolo de apoio mecenático a esta iniciativa que agora se concluiu e se apresenta ao público, com o desejo de que constitua mais uma nota que estimule a um novo convívio com Agustina.
Mónica Baldaque
Presidente da Direcção do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís
PORTO
DOURO E MINHO
Os Quatro Rios é o primeiro romance da trilogia As Relações Humanas, que a autora dedica a seus pais, e que inclui os romances A Dança das Espadas (1965) e Canção Diante duma Porta Fechada (1966), que obteve neste mesmo ano o Prémio Ricardo Malheiros atribuído pela Academia das Ciências de Lisboa. A propósito da reedição da trilogia, Agustina escreveu: «[…] As pessoas que eu conheci e que esqueci, saem destas páginas como se saíssem dos túmulos de Nice. Foi assim que Dante fez o seu Purgatório, com memórias de casto esquecimento. […]» (Fevereiro de 2001)
O enredo de Os Quatro Rios parece assim ter lugar na região do Norte do país, conforme nos é sugerido no início do romance: «As pessoas de quem vou falar possuem todas uma identidade intrigante que é a maneira do Norte de abordar a metafísica. Incapazes de se privarem duma vizinhança sentimental com a vinha, o cereal e os animais, elas tocam, no entanto, pontos essenciais do conhecimento.» O ensaísta Eduardo Lourenço, por sua vez, no ensaio «Desconcertante Agustina: a propósito de Os Quatro Rios», enquadra o espaço do seguinte modo: «De um Minho arcaico que só parecia monótono, Bessa-Luís fez uma caverna de Ali-Babá de surpresas profundas.»
O enredo de Os Quatro Rios ramifica-se a partir da personagem de Albano, que embarcou ainda criança para o Rio de Janeiro com o seu irmão Joaquim. Albano é descrito como «a ovelha negra» dentre os seus cinco irmãos, «um jogador nato» em cujas mãos as cartas de jogar se tornavam «personagens vivas». Ele desloca-se entre o Rio de Janeiro, o Porto e a casa rural de família, sempre com uma presença no destino das outras personagens, de relações familiares. Destas destacam-se as suas irmãs, Maria e Teresa; Justina, a mãe; a tia Ana Maria e sua filha Glaura e o seu filho Clemente, que tomou «um dia posição nas letras».
Os Quatro Rios conduz o leitor a um espaço rural e a outro citadino, no caso, as regiões de Entre-Douro e Minho e a cidade do Porto, ou ainda as paisagens brasileiras, em particular, o Rio de Janeiro.
É na região de Vila Meã que começamos por evocar o narrador de Os Quatro Rios: «[um] grande vale que brilhava de nevoeiros nocturnos e percebiam-se a custo telhados e a negra vara de pinheiros. Um vale como que calcado por uma imensa mão que ajuda o corpo a levantar-se da terra; e havia sobre ele um vibrar de suspiros, ladridos, estalar de lenhas, dobrado salto das águas que correm da frialdade hostil do crepúsculo de Inverno.»
Neste vale estão construídas «muitas casas solarengas ou de grande lavoura edificadas sobre as colinas, nos cômoros pouco elevados à margem das ribeiras e donde se avistam aldeias inteiras, varadas de ladridos de cães, do chiar dos carros que avançam como esculpidos em lama seca».
E o narrador prossegue identificando «uma dessas casas» como sendo a casa de família de Albano, e onde se desenrolam vários momentos deste enredo. Neste excerto Albano visita Portugal vindo do Brasil, no mês de Maio de 1912. A casa, com «um correr de janelas de guilhotina, quadradas e pouco maiores que a boca duma rasa, aparecia, sem ornamentos além dum pé de vinha na sacada pavimentada de lousa, num pequeno cimo terraplanado nas suas eiras, quinteiros e tanques agaloados de velhos renques de tulipas; fazia um pouco de vento e era nessa hora, bela entre todas, em que escurece o sol de Maio e as cerejas negras parecem gotas de sangue coagulado nos ramos».
Situa-se no Porto, na Rua de Costa Cabral, a casa da excêntrica tia de Albano, Ana Maria, e mãe de quatro filhas, a mais velha Glaura, que «teve longa vida e terá de ser uma personagem central desta história». A casa onde viviam aparece descrita como uma quinta de recreio de três pisos e que «estava revestida de dez mil e seis azulejos verdes, nem menos um; possuía preciosas esquadrias fenestrais de cantaria, e creio que quatro urnas flamínias animavam o seu frontispício». Esta casa seria mais tarde arrendada a cônsules americanos.
O casal Clemente, filho de Ana Maria, e Arminda vivia numa casa na Rua Formosa, sob a protecção do tio de Clemente, Albano, que os recebeu num prédio onde instalara um clube de jogo «recamado de espelhos, de colunas de gesso, de mármores negros desde as barbearias aos bufetes». Clemente e Arminda ficaram nesta casa por «empréstimo», «sem futuro determinado», embora Clemente procurasse um futuro nas letras.
Nos dois romances seguintes, que completam esta trilogia, acompanhamos o desenrolar da vida destas personagens, e de outras que vão surgindo, nestes e noutros locais.