Rota Literária, Geografia Agustiniana

Uma Introdução

Desde os primeiros escritos que Agustina Bessa-Luís escolhe um lugar, uma casa, uma paisagem, para aí fazer circular os seus personagens. Não quer dizer que pertençam exclusivamente ali, poderiam existir noutros lugares, climas e sociedades, mantendo o comportamento e o destino. Porque o que se move é a alma, e essa habita todos os lugares e todos os tempos, ao mesmo tempo, sem neles se fixar para sempre. É isso que torna a sua obra intemporal, e não o local.

No entanto, e porque Agustina em nenhuma das suas obras se desprende de si própria, pareceu-nos que este exercício de seguir os rastos das suas paragens inspiradoras podia ser também um contributo memorialista da própria Agustina.

Assim, escolhemos para apontamentos da nossa viagem a cidade do Porto, o Douro e o Minho, deixando para outros roteiros outros caminhos percorridos na vasta obra de Agustina.

Imaginemos um passeio pelo mapa caminhando por aqui e ali, na companhia de uns e de outros, e nas suas falas; parando, para olhar uma rua, uma casa, um vale, uma ruína; ou para sentir um silêncio que nunca foi interrompido. É possível ainda localizar, lembrar, imaginar, e isso transporta-nos para dentro dos cenários, num convívio próximo e privilegiado.

Resta-nos agradecer à Fundação Millennium bcp, na pessoa do Dr. Fernando Nogueira, com quem foi assinado o protocolo de apoio mecenático a esta iniciativa que agora se concluiu e se apresenta ao público, com o desejo de que constitua mais uma nota que estimule a um novo convívio com Agustina.

Mónica Baldaque

Presidente da Direcção do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís

Círculo Literário Agustina Bessa-Luís

Geografia Agustiniana

Porto, Douro e Minho

PORTO

  • Brás-Oleiro, Águas Santas
  • Rua da Boavista
  • Jardim Arnaldo Gama
  • Terreiro da Sé
  • Rua da Pena
  • Rua do Barredo
  • Rua de Costa Cabral
  • Rua Formosa
  • Rua do Bonjardim
  • Rua D. Manuel II (no livro, Rua do Triunfo)
  • Rua de Sá da Bandeira
  • Rua 31 de Janeiro
  • Largo dos Lóios, passando pela Rua das Flores até ao Largo de S. Domingos
  • Praça da Ribeira
  • Rua das Virtudes
  • Rua de Cedofeita
  • Largo de Mompilher (antigo Largo da Picaria)
  • Rua do Breyner e Rua Miguel Bombarda
  • Alameda Basílio Teles
  • Praça dos Poveiros
  • Rua da Cerca
  • Praça da Liberdade (antiga Praça D. Pedro), o extinto Café Guichard; Praça da Batalha (antigo Largo de Santo Ildefonso), o extinto Águia d’Ouro
  • Rua de Santa Catarina
  • Largo da Ramada Alta
  • Calçada do Ouro
  • Rua da Pena
  • Rua Sampaio Bruno
  • Rua de Belomonte
  • Cemitério da Lapa


DOURO E MINHO

  • Rua Padre Teixeira de Carvalho, Ariz, Godim, Peso da Régua
  • Casa do Paço, Lugar de Travanca, Vila Meã, Amarante
  • Rua dos Camilos, Peso da Régua
  • Gervide e Lugar de Cales, Loureiro, Peso da Régua
  • Serra d’Arga
  • Vila Alice, Vilar do Paraíso, Vila Nova de Gaia
  • Quinta do Lodeiro, Baião
  • Santuário do Bom Jesus do Monte, Braga
  • Valadares, Vila Nova de Gaia
  • Fontelas de Cima, Peso da Régua
  • Quinta de Cavaleiros, Bagunte, Outeiro Maior, Vila do Conde
  • Margem do rio Cávado, Braga
  • Vale Abraão, Samodães, Lamego
  • Quinta do Vesúvio, Freixo do Numão, Vila Nova de Foz Côa
  • Quinta de Santa Júlia, Loureiro, Peso da Régua

Círculo Literário Agustina Bessa-Luís

Bibliografia

  • A Bíblia dos Pobres II: As Categorias (Guimarães Editores,1970)
  • A Ronda da Noite (Guimarães Editores, 2006. Relógio D’Água, 2018)
  • A Sibila (Guimarães Editores, 1954. Relógio D’Água, 2017)
  • As Fúrias (Guimarães Editores, 1977)
  • As Pessoas Felizes (Guimarães Editores, 1975. Relógio D’Água, 2019)
  • As Relações Humanas I: Os Quatro Rios (Guimarães Editores, 1964)
  • Caderno de Significados (Guimarães Editores, 2013)
  • Camilo: Génio e Figura (Editorial Notícias, 1994)
  • Contemplação Carinhosa da Angústia (Guimarães Editores, 2000)
  • Contos Amarantinos (Edições Asa, 1987)
  • Dentes de Rato (Guimarães Editores,1987. Relógio D’Água, 2017)
  • «Desconcertante Agustina: a propósito de Os Quatro Rios», Eduardo Lourenço, O Tempo e o Modo, (n.º 22, 1964, p. 112)
  • Deuses de Barro (Manuscrito de 1942. Relógio D’Água, 2017)
  • Elogio do Inacabado (Fundação Calouste Gulbenkian, 2014)
  • Ensaios e Artigos (Fundação Calouste Gulbenkian, 2017)
  • Fanny Owen (Guimarães Editores, 1979. Relógio D’Água, 2017)
  • Mundo Fechado (Coimbra; Mensagem, 1948. Guimarães Editores, 2004)
  • O Livro de Agustina (Guerra e Paz, 2000)
  • O Manto (Livraria Bertrand, 1961. Relógio D’Água, 2018)
  • O Princípio da Incerteza I: Jóia de Família (Guimarães Editores, 2001)
  • Os Incuráveis (Guimarães Editores, 1956, 2014. Relógio D’Água, 2020)
  • Os Meninos de Ouro (Guimarães Editores, 1983. Relógio D’Água, 2018)
  • Prazer e Glória (Guimarães Editores, 1988. Relógio D’Água, 2019)
  • Vento, Areia e Amoras Bravas (Guimarães Editores, 1990. Relógio D’Água, 2019)
  • Vale Abraão (Guimarães Editores, 1991. Relógio D’Água, 2017)

Círculo Literário Agustina Bessa-Luís

Ficha Técnica

  • Pesquisa e conteúdos:
  • Lourença Baldaque

  • Revisão:
  • Anabela Prates Carvalho

  • Agradecimentos:
  • Mónica Baldaque
  • Dr. Miguel Cadilhe
  • Dr. Fernando Nogueira
  • Professor Gaspar Martins Pereira
  • Arquivo Histórico do Porto
  • Aos proprietários e responsáveis das casas referenciadas neste roteiro.
    Pela utilização de textos das obras de Agustina Bessa-Luís

  • Criação do microsite:
  • Bydas, Agência de Comunicação Digital

  • Um projecto do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís
  • Este trabalho teve o apoio mecenático da Fundação Millennium BCP.
  • Porto, Dezembro, 2020

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As Pessoas Felizes (1975)

1. Rua de Cedofeita, Porto

O manuscrito do romance As Pessoas Felizes foi concluído a 7 de Outubro de 1974, tendo sido publicado o livro no ano seguinte. É um romance onde a autora se debruça sobre mudanças de valores, costumes sociais ou culturais, no caso, da sociedade portuense, tendo-se seguido dentro da mesma temática os romances Crónica do Cruzado Osb. (1976), centrado em Lisboa, e As Fúrias (1977), com um regresso à cidade do Porto.

A história tem início com a família Torri em Casal Pedro, «nos lugares populosos do rio Ave», e onde «Casal Pedro, Paradela e outros lugares eram atravessados por um caminho cheio de pó branco e farinhento». O enredo centra-se em Olga Manuela Torri, de diminutivo Nel, que, tendo perdido a mãe, Glória, com onze anos de idade, vai viver para casa da sua tia Florinda casada com João Afonso, no Porto, na Rua de Cedofeita. E embora sejam referidas de passagem outras ruas da cidade, é nesta rua que a autora situa uma grande parte da acção, cruzando as várias personagens, enquadradas numa época de transformações também estas existenciais.

No romance As Pessoas Felizes é na Rua de Cedofeita que a família Coelho de Sousa, «conhecidos pelos Carrancas», habita. É no cruzamento desta rua com a Rua de Álvares Cabral, na direcção da Praça Carlos Alberto, que situamos estes excertos descritivos:

«Numa casa de cinco andares, em Cedofeita, onde a rua já se alarga e tem direito ao nome de faubourg, com os seus jardins escuros e algum palácio de fachada pombalina, nascia uma criança. Cedofeita é a Chaussée d’Antin do Porto.»

«A casa, de cinco andares, era ela própria uma robusta secção de árvore, com raízes no solo de Cedofeita, antigo lugar de plantio, logo vizinho das quintas dos brasileiros de Álvares Cabral. Álvares Cabral, traçada já em avenida, com moradias do tempo das patacas, cheias de cantaria, de portões, de salões de baile e com loiça inglesa até aos sanitários. A casa dos Carrancas, essa brotava do chão de Cedofeita como uma árvore. Das caves subia a agonia inconsumada dos antepassados, com o fluido erótico da morte, das catacumbas e do segredo.»

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As Pessoas Felizes (1975)

2. Largo de Mompilher (antigo Largo da Picaria), Porto

A personagem de Fausto era um amigo de João Afonso, marido de Florinda, «um céptico endividado» que «lia Thackeray e ilustrava com ele os seus amigos da Feitoria». A sua actividade era exercida Além-Douro, no Largo da Picaria, ou nas «proximidades do Hotel Aliança». Este largo situado no cruzamento da Rua da Conceição com a Rua da Picaria viu a sua toponímia ser alterada no início dos anos 40 do século XX. Contudo não é incomum denominar-se local e informalmente por Largo da Picaria.

O Hotel Aliança, por sua vez, datado de finais do século XIX situava-se na esquina da Rua Sampaio Bruno com a Rua do Bonjardim.

«O Largo da Picaria e as suas imediações onde se instalou um comércio de antiguidades, próspero depois do após-guerra e que se prolongou até à Travessa das Oliveiras e à Praça de Carlos Alberto, esse largo teve em tempos outra fortuna. Era um lugar afazendado, com casa setecentista e uma capela, que se degradou até à situação em que se vê agora. Essa capela, que parece que Nasoni desenhou, não tem hoje qualquer importância na desmazelada bifurcação do lugar.»

[…]

«O cavalheiro Fausto […] teve durante largo tempo um escritório de comissões e consignações no Largo da Picaria, situado numa dessas casas chapeadas de breu e cujos fogões de sala denunciam um passado britânico.»

[…]

«O cavalheiro Fausto gastava em três meses o rendimento das cepas e das oliveiras, e nunca pensava reformar outra coisa senão as suas letras bancárias. Quando viu que já ninguém o conhecia nas proximidades do Hotel Aliança, onde costumava hospedar-se, e que já ninguém lhe perguntava nada do seu tempo, como por exemplo as corridas de toiros da praça da Rua da Alegria, ele próprio optou pela reforma.»

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As Pessoas Felizes (1975)

3. Rua do Breyner e Rua Miguel Bombarda, Porto

«Não sei se no Porto os avisados capitalistas tinham um trintanário encarregado de lhes vestir a peliça ao cruzar os canais da Rua do Breyner e de Miguel Bombarda. É possível. A história dos burgueses do Porto é tão desconhecida como decalcada nas metáforas dos românticos franceses.»

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As Pessoas Felizes (1975)

4. Alameda Basílio Teles, Porto

Era entre a Casa do Sacramento, no Porto, e a quinta em Moira Morta, que o casal, Francisco e Nel, dividia a sua vida. Para situarmos o lugar onde vivia Francisco de Sousa, «sobre a ribanceira de Massarelos», sugere-se caminhar junto ao rio Douro, pela Alameda Basílio Teles, e avançar pela Rua de Monchique até à Alfândega do Porto.

«Ele vivia na Casa do Sacramento com o seu irmão Bonifácio, e ambos eram julgados excêntricos e pouco afligidos das virtudes viris em que o Porto ainda assenta a contabilidade dos negócios e a confiança das suas ideias democráticas. A Casa do Sacramento estava implantada sobre a ribanceira de Massarelos e, em tempos, propriedade de ingleses da indústria, tinha, com a pintura preta das paredes e as grandes janelas de guilhotina, um ar tétrico, à Edgar Poe.»

[…]

«Francisco de Sousa Barros era um homem cuja inteligência se parecia com uma herança que ele administrasse juntamente com a sua fábrica de panos e a sua cultura conventual. Ele e Bonifácio eram os netos dum deputado da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. A Casa do Sacramento, legada em usufruto ao primeiro descendente que lá nascesse, coube a Bonifácio; ela era sua legítima propriedade, mas optara por viver só no andar térreo virado a nascente. Tudo o resto deixara a Francisco e sua mulher, que mantiveram o estilo colonial inglês, com os fogões pintados de branco e os soalhos de boa madeira.»

[…]

«Sobre a alameda de Massarelos, um pouco para a direita, erguia-se a Casa do Sacramento, construída à maneira rústico-pombalina, com janelas corridas e telhados pintados de branco. Rodeavam-na terrenos alcantilados, jardins assentes em pedreiras com os seus miradouros sombreados por antiquíssimas glicínias. Os seus armazéns, cavados na rocha viva, estavam agora adaptados a garagens. Ainda se localizava neles o sítio das prensas e dos lagares; nos dias quentes, ao cair da noite, o cheiro do sarro entranhado na pedra subia até aos andares de cima como um bafo de mosto fermentado.»

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As Pessoas Felizes (1975)

5. Praça dos Poveiros, Porto

«No Porto, grande parte da sua gente, se não fosse o sangue inglês que lhe dá às vezes um perfil marítimo, era feia como trovões. O mesmo acontece no Douro. Miguel Torga localizou na estação do caminho-de-ferro da Régua a pátria resumida da fealdade. Pois será. A beleza é uma questão de densidade atmosférica e de equilíbrio entre a razão e o gesto. A máscara responde ao rito. Pois será.
Quanto ao Porto antigo das pequenas sociedades, eu nada sei da tasca do Pepino que fez carreira no dicionário. Mas houve sempre no Porto um local de convívio em que o facies da cidade se imortaliza. O restaurante da Mamuda, aos Poveiros, é decerto o que corresponde à Estalagem da Rainha ou ao Estanislau da Batalha, de 1841 precisamente.
»

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