Desde os primeiros escritos que Agustina Bessa-Luís escolhe um lugar, uma casa, uma paisagem, para aí fazer circular os seus personagens. Não quer dizer que pertençam exclusivamente ali, poderiam existir noutros lugares, climas e sociedades, mantendo o comportamento e o destino. Porque o que se move é a alma, e essa habita todos os lugares e todos os tempos, ao mesmo tempo, sem neles se fixar para sempre. É isso que torna a sua obra intemporal, e não o local.
No entanto, e porque Agustina em nenhuma das suas obras se desprende de si própria, pareceu-nos que este exercício de seguir os rastos das suas paragens inspiradoras podia ser também um contributo memorialista da própria Agustina.
Assim, escolhemos para apontamentos da nossa viagem a cidade do Porto, o Douro e o Minho, deixando para outros roteiros outros caminhos percorridos na vasta obra de Agustina.
Imaginemos um passeio pelo mapa caminhando por aqui e ali, na companhia de uns e de outros, e nas suas falas; parando, para olhar uma rua, uma casa, um vale, uma ruína; ou para sentir um silêncio que nunca foi interrompido. É possível ainda localizar, lembrar, imaginar, e isso transporta-nos para dentro dos cenários, num convívio próximo e privilegiado.
Resta-nos agradecer à Fundação Millennium bcp, na pessoa do Dr. Fernando Nogueira, com quem foi assinado o protocolo de apoio mecenático a esta iniciativa que agora se concluiu e se apresenta ao público, com o desejo de que constitua mais uma nota que estimule a um novo convívio com Agustina.
Mónica Baldaque
Presidente da Direcção do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís
PORTO
DOURO E MINHO
O romance Prazer e Glória foi publicado no final dos anos oitenta e acompanha o percurso artístico da personagem, o escultor João Baptista Pinheiro, que se rodeia de seus filhos e mulheres. Nele acompanhamos a ascensão do escultor desde a juventude, nos anos vinte do século XX, até à década de setenta, aquando de um regime que, segundo o narrador, «favorecia essa casta pobre dos funcionários da monarquia, e elevava-se uma onda de emigrantes do poder, representados agora por uma geração pronta a colaborar na modernização da sociedade». Enquanto na década de sessenta «João Baptista assentou numa carreira que já não era prometedora, mas respeitada em todas as suas obras», na década seguinte «estava tão famoso e rico que já nada o podia desconcertar».
A autora faz ainda uma reflexão sobre a transformação da imagem do país ao longo de décadas preenchidas por «obras que marcavam a sensibilidade legalista, e os palácios de justiça levantaram-se como padrões da história e catedrais do primado forense», que ostentavam os comportamentos de uma sociedade burguesa onde «o corpo era um continente a explorar».
A história tem início na juventude de João Baptista, por ocasião do golpe de 28 de Maio de 1926, um período histórico que a autora já havia explorado no romance As Categorias, de 1970. E é em Lordelo do Ouro, mais precisamente na Calçada do Ouro, junto ao rio, que situamos João Baptista neste tempo, quando ainda vivia em casa dos pais: «João habitava na freguesia de Lordelo do Ouro, lugar não há muito tempo ermo em que se traçou o caminho da Foz, arborizado e percorrido pelos eléctricos amarelos.»
[…]
«Lordelo ficou uma área bilingue, com as quintas britânicas de belo acontecimento paisagístico; e com as gloriosas mansões de novos-ricos debruadas de sacadas e de escadarias de opereta. Pareciam em tudo cenários de teatro diante dos quais se podiam passar os dramas de Ibsen.»
Foi nesta rua que João Baptista conheceu a independência para trabalhar e se libertar dos horários rígidos da casa dos pais. Foi aqui, em casa da sua tia Josefina, que «teve o seu primeiro atelier, num quinto andar da Rua da Boavista, nas traseiras. Via dali a cúpula da ardósia dum palacete mergulhado num desses jardins que guarneciam a cidade e lhe davam a respeitável teia das suas fragrâncias de limoeiros e de glicínias.»
Aquando da consagração artística de João Baptista Pinheiro assinalamos nas margens do rio Cávado a casa dos Paulos, «como era conhecido o paço rural comprado por João Pinheiro». «Quem tinham sido os Paulos, já ninguém sabia bem. Ainda havia um lugar na estrada da Portela com essa designação, e podia-se supor que houvera um juiz corregedor no Douro com igual nome. Mas os Paulos do Cávado, em 1890, já viviam na casa, que fora provavelmente mandada construir por um bispo de Braga, como belvedere.»
A casa dos Paulos é representativa da fama e fortuna de João Baptista, um espaço «ao dispor dos filhos e da gente que os servia e educava». O escultor mandou construir uma outra casa no terreno, «onde morava e recebia», embora a casa dos Paulos fosse o local de reunião familiar e convívio. A casa está descrita como sendo de «traça italiana, dum piso só, varado por um corredor que parecia uma estrada real e no meio do qual, por artes completamente decorativas, estava uma banheira romana, de pórfiro, e que o povo tomava por uma salgadeira especial».
Durbalina, Durba, é uma das filhas de João Baptista Pinheiro, cuja presença acompanha todo o romance, um ser misterioso, cheia de silêncios, povoados de uma vida dupla, e de transformações, como se de um ser invertebrado e desalmado se tratasse. Durba casa com Mário Orta, de uma casa burguesa de Cedofeita.
Os Orta «amontoavam livros e quadros, e a casa deles em Cedofeita era um museu de arte, com lustres de Murano e tapetes persas. Não tinham propriamente mau gosto, mas estavam fora de moda há trinta anos, no tocante à colecção dos mestres, na qual figuravam os Vuillard e os Arp.»
[…]
«Os Ortas, fechados na cripta de Cedofeita como grandes sacerdotes, convinham que os tempos eram de heresia e de dúvida. Mas não se deixavam abater pela renúncia, executavam todos os actos que eram necessários para que não se abrissem fendas na tela social ou, pelo menos, nas paredes da sua casa.»
Um dia, morre o velho Orta, avô de Mário, e Durba e o marido herdam a casa:
«Eles tinham herdado a casa dos Ortas, em Cedofeita, zona preservada e, de certo modo, espelho da cidade, com o seu comércio intrépido de pequeno negócio e o carácter burguês das varandas como dentaduras expostas. Durba sentiu um certo orgulho de proprietária ao entrar em contacto mais íntimo com os haveres dos Ortas. Era como um legado episcopal, com anel e báculo. Os impressionistas, a colecção de Pousão, os serviços da Companhia das Índias em vitrines com alarme, deixavam‑na indiferente como peso pecuniário; era antes uma paz tumular e profundamente ociosa, como estar deitado num quarto com cortinas brancas, a pensar em gente já desaparecida. O velho Orta durara muitos anos; por fim, era preciso acordá‑lo para dar‑lhe caldo por uma espécie de lâmpada de Aladino com flores de pervinca no bojo.»