Desde os primeiros escritos que Agustina Bessa-Luís escolhe um lugar, uma casa, uma paisagem, para aí fazer circular os seus personagens. Não quer dizer que pertençam exclusivamente ali, poderiam existir noutros lugares, climas e sociedades, mantendo o comportamento e o destino. Porque o que se move é a alma, e essa habita todos os lugares e todos os tempos, ao mesmo tempo, sem neles se fixar para sempre. É isso que torna a sua obra intemporal, e não o local.
No entanto, e porque Agustina em nenhuma das suas obras se desprende de si própria, pareceu-nos que este exercício de seguir os rastos das suas paragens inspiradoras podia ser também um contributo memorialista da própria Agustina.
Assim, escolhemos para apontamentos da nossa viagem a cidade do Porto, o Douro e o Minho, deixando para outros roteiros outros caminhos percorridos na vasta obra de Agustina.
Imaginemos um passeio pelo mapa caminhando por aqui e ali, na companhia de uns e de outros, e nas suas falas; parando, para olhar uma rua, uma casa, um vale, uma ruína; ou para sentir um silêncio que nunca foi interrompido. É possível ainda localizar, lembrar, imaginar, e isso transporta-nos para dentro dos cenários, num convívio próximo e privilegiado.
Resta-nos agradecer à Fundação Millennium bcp, na pessoa do Dr. Fernando Nogueira, com quem foi assinado o protocolo de apoio mecenático a esta iniciativa que agora se concluiu e se apresenta ao público, com o desejo de que constitua mais uma nota que estimule a um novo convívio com Agustina.
Mónica Baldaque
Presidente da Direcção do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís
PORTO
DOURO E MINHO
A Ronda da Noite foi o último romance publicado por Agustina Bessa-Luís. Trata-se de uma história em torno de uma alegada cópia do quadro homónimo de Rembrandt, na posse da família Nabasco há muitos anos. A personagem de Maria Rosa Nabasco, «na sua vaidade mística […] habituara‑se a não duvidar. Para ela A Ronda da Noite era autêntica e tudo o mais que pudesse assemelhar‑se era pura falsificação.»
O quadro é como que uma parábola desta família, que vê n’A Ronda da Noite «um espelho onde se reflectem todas as suas aspirações, diversas consoante os que nele se vêem retratados ou simplesmente sugeridos» (António Mega Ferreira, no prefácio à edição de 2018). Este quadro da família Nabasco vai acompanhá-la durante várias gerações, pelas diversas casas em que viveram.
Ao longo do romance a autora também contempla a vida e a obra de Rembrandt: «O sentimento pagão e delirante vai impregnar A Ronda da Noite, que é terminada em 1642, ano em que morre Saskia, depois da filha Cornélia; é a segunda Cornélia, a primeira morre em 1638. O estado moral e mental do pintor seria precário, e é isso que dá profundidade a A Ronda da Noite. Pinta como se falasse consigo próprio, indiferente em desatinar, levado por um escrúpulo apenas quanto ao destino que continuamente lhe marca encontro. Interroga‑se, enquanto pinta. Os contínuos auto‑retratos dizem que se preocupa consigo mesmo.»
Ainda sobre o pintor, Agustina escreveu, neste mesmo ano, e a propósito de um diálogo que tivera na Póvoa de Varzim com o poeta José Régio: «Rembrandt sabia o que são as crianças, e o modelo que se parece comigo é a Saskia, na Ronda da Noite. Anda ali, no meio daquela gente pronta a marchar e a agitar bandeiras, e ela sorri como se estivesse segura de que era o lugar dela, na confusão.» (Jornal de Notícias, 19 de Março de 2006. Ensaios e Artigos, vol. III)
É na Casa do Cão, «assim chamada pelas suas dimensões apertadas no meio dum parque onde não entrava o sol», que a família Nabasco se vai instalar depois de ter deixado a casa de província chamada a Ronda, no Douro. Sabemos que aquando da revolução de Abril de 1974 a família Nabasco ainda habitava a Ronda, quando «Maria Rosa fez as malas, enrolou A Ronda da Noite e meteu‑a no forro da cavalariça, na Ronda. Foi para o Brasil passar umas férias que se anunciaram maiores do que o costume.»
No romance, a Casa do Cão situa-se no lugar de Águas Santas, e aparece descrita como tendo um «pequeno bosque de árvores raras e, no meio do bosque, um lago, com uma ilha. No meio da ilha um pinheiro rasteiro e a sombra inquietante dos seus ramos. A propriedade, de recreio, como eu disse, estendia‑se em u, ladeada por tílias gigantes. Ao lado havia uma bouça onde pernoitavam os pavões que, como se sabe, gostam dos ramos altos. A lenda de que os pavões trazem desgraça não sei de onde veio. O seu grito estridente talvez concorra para a triste fama que têm. Mas a verdade é que o antigo dono de Águas Santas se suicidara pondo o cano duma arma de caça debaixo do queixo e disparando. Tinha construído uma garagem no lugar duma capela que mandou arrasar, e aquilo contribuiu mais ainda para o mau nome da propriedade.»
Esta casa que ocupa uma grande parte do romance foi trocada pelos Nabascos pela casa do Torreão Vermelho, à qual a autora dedica o capítulo VI: «Com o peso dessa má fama, Maria Rosa Nabasco não descansou enquanto não mudou de casa. Mudou para outra maior, na vizinhança, mas nem por isso se desfez no seu espírito a aura da fatalidade. Filipe Nabasco, antes de morrer, fez um pedido estranho. Quis que A Ronda da Noite voltasse a ser posta na parede da sala de jantar, caso o Torreão Vermelho viesse a ser comprado por Maria Rosa.»
A compra do Torreão Vermelho, na vizinhança da Casa do Cão, por Maria Rosa, «obedeceu em parte à necessidade de resgatar A Ronda do seu cativeiro na província. O Torreão Vermelho, além de possuir condições para abrigar o quadro (3,63 m por 4,37 m) deixava respirar livremente A Companhia do Capitão Frans Banning Cocq preparada para avançar, mas ainda surda a uma ordem que estava a ser dada. Não lhe obedeciam, era tudo.»
A autora descreve ainda a transformação da Casa do Cão, quando Martinho Nabasco, neto de Maria Rosa, a foi rever anos depois, e encontrou uma casa «reduzida a uma creche ou coisa que o valha, ainda viu uma tábua vermelha a flutuar no que tinha sido um fabuloso lago de jardim, com uma ilha ao centro onde se derrubavam os ramos dum pinheiro que era como uma selva inteira em miniatura.»
No romance A Ronda da Noite é também referida uma casa da Rua de Belomonte, que Martinho Nabasco, o neto de Maria Rosa, já não conhecera, e «que tinha a cozinha e a sala de jantar no terceiro andar voltado ao rio. Ao que parecia, era uma casa mítica. Às seis horas da tarde abria‑se a porta do quintal aos cães e eles subiam pelas escadas como um esquadrão da guarda. Iam para a cozinha, derrubando cadeiras, abanando as caudas como chicotes, ganindo de alegria. Eram cães de caça; e embora não houvesse mais caçadores em casa, alimentava‑se essa tradição com os setters bonitos, cor de fogo, cujo pêlo luzia ao lume do fogão de lenha. Porque até muito tarde se cozinhava a lenha, e se usava a lenha para os fogões de sala. Ouvia‑se o crepitar das achas secas como um ruído de bom augúrio na manhã enevoada. O rio tinha ainda humores de estação, crescia no Inverno e acumulava nas margens laranjas e traves partidas; e algum cabrito morto vinha na corrente, rápido na flor das ondas já invadidas pelo mar aberto.»
O Cemitério da Lapa é mencionado no romance A Ronda da Noite como o lugar onde estavam sepultadas umas criadas da família Nabasco, assim como Patrícia Xavier, amiga de Maria Rosa Nabasco, que «ficou sepultada numa antiga capela do Cemitério da Lapa, duas vezes assaltada depois da Revolução dos Cravos. Tinha as proporções majestosas dum andar de boa área, um T1, digamos assim. Velhas rendas pingavam do altar, donde os candelabros de prata tinham sido roubados; e, por terra, jaziam alfaias do culto, o suporte do Evangelho e umas galhetas com borras de vinagre. O lampadário, que viera de Veneza, também faltava. O ar era húmido, havia infiltrações e os ratos tinham roído papéis, talvez pagelas com a vida dos santos ou restos de bouquets amarrotados como lixo e deixados a um canto.»