Desde os primeiros escritos que Agustina Bessa-Luís escolhe um lugar, uma casa, uma paisagem, para aí fazer circular os seus personagens. Não quer dizer que pertençam exclusivamente ali, poderiam existir noutros lugares, climas e sociedades, mantendo o comportamento e o destino. Porque o que se move é a alma, e essa habita todos os lugares e todos os tempos, ao mesmo tempo, sem neles se fixar para sempre. É isso que torna a sua obra intemporal, e não o local.
No entanto, e porque Agustina em nenhuma das suas obras se desprende de si própria, pareceu-nos que este exercício de seguir os rastos das suas paragens inspiradoras podia ser também um contributo memorialista da própria Agustina.
Assim, escolhemos para apontamentos da nossa viagem a cidade do Porto, o Douro e o Minho, deixando para outros roteiros outros caminhos percorridos na vasta obra de Agustina.
Imaginemos um passeio pelo mapa caminhando por aqui e ali, na companhia de uns e de outros, e nas suas falas; parando, para olhar uma rua, uma casa, um vale, uma ruína; ou para sentir um silêncio que nunca foi interrompido. É possível ainda localizar, lembrar, imaginar, e isso transporta-nos para dentro dos cenários, num convívio próximo e privilegiado.
Resta-nos agradecer à Fundação Millennium bcp, na pessoa do Dr. Fernando Nogueira, com quem foi assinado o protocolo de apoio mecenático a esta iniciativa que agora se concluiu e se apresenta ao público, com o desejo de que constitua mais uma nota que estimule a um novo convívio com Agustina.
Mónica Baldaque
Presidente da Direcção do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís
PORTO
DOURO E MINHO
Agustina Bessa-Luís concluiu a redacção do romance A Sibila a 16 de Janeiro de 1953 para o apresentar a concurso ao Prémio Delfim Guimarães, criado pela Guimarães Editores. Agustina concorre sob o pseudónimo Stravoguine, nome de uma personagem do romance Os Possessos, de Fiodor Dostoievski. A autora viria a vencer este prémio, como também o Prémio Eça de Queiroz, no mesmo ano da publicação de A Sibila. O romance foi acolhido pela crítica com entusiasmo, uma inovação literária que se distanciava do cânone neo-realista. A Sibila foi publicado no seguimento de Os Super-Homens (1950) e Contos Impopulares (1951-53).
A Sibila conta a história da recuperação por Quina, a Sibila, de um património familiar que gerações de má gestão tinham vindo a delapidar. O romance inicia com Germa, sobrinha de Quina, numa visita com o primo Bernardo à casa agora fechada, onde, «bruscamente, Germa começou a falar de Quina».
«Era em Setembro, e a casa, temporariamente habitada, expulsava o seu carácter de abandono e de ruína, com aquele calor de vozes e de passos que amarrotam folhelhos amontoados em todos os sobrados.» Ao narrar episódios do passado para enquadrar o tempo presente, vamos também conhecer a história dos pais de Quina, Maria e Francisco Teixeira.
Agustina referiu este romance, que lhe «abriu as portas das letras», em diversas intervenções ao longo da sua vida: «A Sibila abriu-me as portas das letras, com a sua família sacerdotal, com os seus provincianos de carreira, os amigos da fraternidade e os amigos da onça. Fiz amigos e inimigos, comecei a viajar, a interpretar os sinais de esquerda e os valores simbólicos de direita. D’Annunzio estava mal enterrado, Beckett aparecia na forma inovadora duma estrela fixa, eu continuava a comportar-me como filha de Deus, isto é, perfeitamente anormal segundo os critérios humanos. Tinha a inibição do mal, que é própria do narcisismo profundo. A quem interessar, esse tipo de inibição reconhece-se em Leonardo de Vinci.» (O Livro de Agustina)
«Para começar, [a Sibila] é uma figura de ficção porque permite que se imagine e se crie o tempo em que ela se move. E, por outro lado, é uma pessoa real. Viveu e morreu nos lugares que ainda hoje podem ser visitados, cerca de Vila Meã, onde a autora, ela própria, nasceu. A quinta da Vessada existe ainda, sem alterações nos seus limites e forma; a casa ergue-se sobre a grande eira de pedra com as sacadas onde se enrolava um pé de videira.» («A Sibila de todos», Caderno de Significados).
Num longo texto intitulado «Encontro com a Sibila num domingo de manhã», datado 29 de Setembro de 1996, Agustina retoma a personagem da Sibila, «nascida na Casa do Paço, que no romance tem o nome de Casa da Vessada, era a penúltima de nove irmãos e a mais nova das raparigas. […]» (Contemplação Carinhosa da Angústia)
É pois na Casa do Paço que seleccionámos para leitura dois excertos do início deste romance:
«‒ Há uma data na varanda desta sala ‒ disse Germana ‒ que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a ruínas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores.»
[…]
«Desde a morte de Quina, nunca mais a casa tivera aquela emanação de mistério grotesco ou ingénuo […] Ah, Quina, tão estranha, difícil, mas que não era possível recordar sem uma saudade ansiada, quem fora ela? Joaquina Augusta nascera nessa mesma casa da Vessada, setenta e seis anos antes.»